Região é o principal destino para quem busca a inovação. Empreendedores brasileiros contam benefícios e desafios de passar uma temporada por lá:
O Vale do Silício, que fica na Califórnia (EUA), é a meca das startups– e alguns brasileiros resolveram fazer uma peregrinação para lá nos últimos anos.
Não é para menos. O Vale concentra 5.625 negócios inovadores, segundo o banco de dados da Angel List, o que é mais do que as startups espalhadas por todo o Brasil. Em sua coleção de sucessos estão as companhias Apple, Google, HP e Netflix.
No escritório de uma das aceleradoras mais conhecidas da região, a 500 Startups, 42 negócios brasileiros já marcaram presença. É pouco em relação às 900 startups que já receberam aportes da instituição, mas há uma perspectiva de alta.
“Em nossa última turma, 42% das empresas são de fora dos Estados Unidos. O país tem interesse em negócios criados por imigrantes, e fora do meu portfólio vejo que tem aumentado o interesse por países emergentes como um todo. O Brasil entra nessa situação”, afirma Rodolfo Pinotti, diretor de operações da 500 Startups no Brasil.
Porém, não podemos descartar o sucesso que várias startups obtiveram ficando no Brasil. O colombiano David Vélez fez um MBA na Universidade de Stanford, na própria Califórnia, mas viu maiores oportunidades no mercado brasileiro e criou o Nubank por aqui. Enquanto isso, o aplicativo de mobilidade urbana 99 nasceu nacional e decidiu continuar assim. Hoje, as duas startups são avaliadas em mais de um bilhão de dólares e são consideradas unicórnios brasileiros.
Mas, afinal, como os brasileiros podem tomar a decisão de levar seu negócio para o Vale do Silício, temporária ou definitivamente? E quais são, na prática, os prós e contras de tal escolha?
O site EXAME conversou com três brasileiros que passaram uma temporada (ou mais) no Vale do Silício. Confira seus relatos a seguir:
Ir e ficar
Para Guilherme Cerqueira, empreender no Brasil é como subir uma escada rolante que está descendo. O ecossistema empreendedor melhorou muito nos últimos anos, mas segue pequeno em comparação ao Vale do Silício.
“Nos Estados Unidos, mesmo quando você fracassa, o governo, os investidores e as universidades não veem isso como um erro e estão sempre dispostos a ajudar. Eles acreditam em você, como pequeno empreendedor, e suas conquistas são ainda mais celebradas”, afirma.
Cerqueira começou a empreender com uma empresa de pesquisa com consumidores, em 1999. Depois de 17 anos no negócio, percebeu como as métricas de satisfação não se traduziam em melhores vendas para quem contratava o serviço do negócio.
O empreendedor decidiu se aprofundar no processo de tomada de decisão dos consumidores e elaborou um método de pesquisa que não apenas levasse o papel e a prancheta para a internet, mas que usasse tecnologias como inteligência artificial e machine learning.
Cerqueira deixou de ser CEO da empresa e decidiu passar uma temporada no Vale do Silício assim que seu novo projeto, chamado Worthix, foi selecionado pela 500 Startups. O ano era 2016 e o negócio já tinha alguns poucos clientes pagantes.
“Eu queria que minha startup fosse global. Em minha experiência anterior, me arrependi de ter focado só no mercado local. Negócios que nascem com mentalidade global conseguem alcançar patamares maiores em um tempo menor”, afirma.
Ao todo, a Worthix captou 1,7 milhão de dólares em investimento. O negócio começou a vender seus produtos e serviços no segundo semestre de 2017 e possui 35 clientes, divididos entre Estados Unidos e Brasil, dentre eles Banco do Brasil, Elo7, Localize, Oi, Santander e Vivo. O ticket médio anual por empresa é de 90 mil dólares.
O negócio possui um escritório no Vale do Silício (onde moram Cerqueira e sua família), mas desde o ano passado passou sua sede para a cidade de Atlanta. Além da redução de custos – São Francisco é uma das regiões mais caras para se viver nos Estados Unidos –, Cerqueira afirma que a decisão também foi estratégica.
“O Vale é o melhor lugar para planejar e estruturar para decolar. Depois que essa fase passa, talvez seja melhor estar perto dos seus clientes. Como a maioria dos meus clientes está na costa leste e no Brasil, o Vale do Silício é mais complicado inclusive em fuso horário.”
A expectativa de faturamento da Worthix para 2018 é de 5 milhões de dólares. O negócio possui apenas quatro funcionários no Brasil e pretende aumentar a equipe, mas manterá sua sede nos Estados Unidos.
”Dependendo do negócio, voltar ao Brasil pode ser um planejamento possível e até benéfico. Por exemplo, um negócio de agricultura ou de petróleo. Em softwares com potencial global, não faz sentido. Empreendendo daqui, podemos gerar mais emprego e pagar mais impostos, contribuindo ainda mais para a economia do Brasil.”
Ir e voltar
A Audima, projeto da brasileira Paula Pedroza para trazer áudio à experiência de navegar pela internet, chamou a atenção do Vale do Silício. O negócio começou a partir de um gosto pessoal da empreendedora, que preferia ouvir a ler na hora de aprender conteúdos.
Sua ferramenta foi selecionada entre outras 200 pelos mentores do centro de inovação GSVlabs, o que lhe rendeu uma participação no programa Pioneer Accelerator no final de 2016.
Após ser selecionada para a aceleração de três meses, a startup percebeu que o real potencial do negócio estava na acessibilidade e no impacto social. Por isso, meses depois, Pedroza mudou seu plano de negócio.
“A pivotagem foi feita a partir das experiências práticas dos nossos usuários. No Vale nos ensinam muito isso, de não planejar nada em longo prazo. Lance mínimos produtos viáveis, erre rápido e conserte mais rápido ainda. Nossa empresa foi um ótimo exemplo disso.”
Em abril de 2017, a Audima lançou sua solução: um software que pode ser instalado em sites para torná-los acessíveis a deficientes visuais e pessoas com dificuldade de leitura, como a adoção de players de áudio, por exemplo.
O Pionner Accelerator terminou com uma apresentação para investidores em um dos campi do Google, onde a Audima conseguiu sua primeira rodada de investimento. Foram 250 mil dólares em dinheiro e créditos em ferramentas das gigantes Amazon, Facebook, Google e IBM.
“O Vale é um dos principais polos de tecnologia do mundo. A palavra aceleração é exatamente eu que eu senti lá. Eles têm uma mentalidade de fazer as startups darem certo, encarando as dificuldades como algo normal e que poderá e deverá ser superado. Apesar das incertezas que rondam o fato de ter uma startup, você sabe para onde ir.”
Hoje, o negócio possui 1,5 milhão de visitas diárias em seus players. Eles são gratuitos, mas contam com anúncios. Há apenas um mês a Audima lançou um modelo premium: se o site cliente quiser alguns recursos a mais, como vozes diferentes e um modelo diferente de player de áudio, deve pagar.
O Brasil é o principal mercado da Audima, que continua com a sede por aqui. “Eu sempre tive vontade de lançar aqui no Brasil primeiro e ter minha equipe aqui. Eu amo meu país e acho que ele precisa de pessoas que vão lá fora, aprendem e depois trazem ao nosso país, fomentando nosso empreendedorismo aqui”, defende.
Agora, a Audima está desenvolvendo um aplicativo para deficientes visuais com o objetivo de tornar a própria navegação pela internet mais acessível. O negócio também prepara o lançamento de seu software nos Estados Unidos. Pedroza já está com viagem marcada ao país, onde também busca uma segunda rodada de aportes para a Audima.
No meio do caminho
Entre voltar ou ficar, a empreendedora Emília Chagas decidiu ficar no meio do caminho: enquanto alguns sócios ficam em São Francisco, toda a operação, de 25 funcionários, fica em Florianópolis.
Sua startup é a Contentools, ferramenta para gestão de conteúdo por equipes de marketing. O negócio lançou seu mínimo produto viável em 2014.
“Crescendo no Brasil, percebemos que resolvíamos um problema também global em questões como organizar sem dores de cabeça um calendário editorial, conversar com especialistas, publicar em diversas mídias e analisar resultados”, afirma a empreendedora.
Segundo Chagas, 40% do mercado de conteúdo para marketing se concentra nos Estados Unidos. A Contentools foi selecionada para a 500 Startups no início de 2015.
No Vale do Silício, Chagas validou seu software com vários gestores americanos. “Antes mesmo de lançarmos um produto voltado ao mercado internacional, já tínhamos a adesão desses executivos. Aprendemos muito sobre modelos de distribuição de produtos globalmente, que é um grande diferencial da 500. Fora a marca e o networking fortes ao estar por lá.”
A Contentools lançou uma versão teste do novo produto no mesmo ano. O negócio atende desde projetos únicos até dezenas de planejamentos. As mensalidades vão de 99 a 10 mil dólares.
Hoje, o negócio possui 13 mil usuários, de mil equipes de marketing, em 70 países. A maioria do público é de americanos e brasileiros, apesar de Chagas ver potencial em países como Alemanha e Austrália.
“O principal benefício de estar no Vale é participar de um dos maiores polos de concepção de novas tecnologias do mundo. Há trocas de conhecimento todos os dias com os melhores profissionais de diversas áreas de ponta, e isso faz a diferença para qualquer negócio”, defende.
Enquanto o desenvolvimento de negócios fica em São Francisco, toda a operação da Contentools fica em Florianópolis.
A escolha por manter o backoffice em Florianópolis foi baseada em custo-benefício: o local possui bons talentos por um bom custo de vida. “Florianópolis é um lugar bem sui generis em termos de encontrar talentos em tecnologia, indo de engenharia a negócios. É a cidade brasileira com maior densidade de startups e muitas empresas de São Paulo colocam seu time de desenvolvimento de produto lá.”
Agora, a Contentools estuda adotar aplicativos como Slack e Trello para facilitar o esquema de comunicação remota. O negócio quer dobrar sua equipe neste ano e melhorar os insights gerados pela plataforma pelo uso de inteligência artificial e machine learning. “Poderemos fazer uma análise de termos buscados ainda no planejamento, e não depois de publicarmos os textos.”
Devo empreender no Vale?
Histórias como as vistas acima inspiram muitos brasileiros a irem para o Vale do Silício, seja por motivos empresariais (uma melhor estratégia para o negócio) ou pessoais (a vontade de mudar de país).
Pinotti, da 500 Startups, vê tanto empreendedores que realmente colocam a mudança na ponta do lápis quanto aqueles que querem sair do Brasil e tentam justificar o desejo com a aceleração em outro país. “Vejo isso como um pouco de impulso, porque em todo país há dificuldades.”
Para quem realmente chega com o objetivo de alavancar o negócio, um dos benefícios de ir aos Estados Unidos é ver tudo andar mais rápido para sua startup. “Cerca de 28% do investimento mundial em startups sai do Vale do Silício. O empreendedor brasileiro que vai para lá consegue navegar nesse ecossistema e acessa, além do capital, conhecimento, melhores práticas e relacionamentos valiosos.”
Mas vale lembrar que o custo de vida é altíssimo e a competição é bem mais pesada. É preciso ter uma ideia muito consistente e, principalmente, não esperar o sucesso cair do céu.
“Muitos acham que o Vale é apenas chegar lá, marcar um encontro e esperar os investimentos. O fundador deve pensar em como ir à região se encaixa na estratégia dele e se ele tem um plano quando chegar lá. Caso contrário, serão recursos jogados ao vento.”
Depois da aceleração, como decidir entre se fixar nos Estados Unidos ou voltar ao Brasil? A decisão está muito relacionada ao tipo de serviço ou produto que sua startup comercializa. Procure saber se sua startup é ou não facilmente escalável e quantos recursos tal movimento irá exigir diante do retorno previsto.
Após a reflexão, peregrinar à meca das startups pode virar uma missão de vida – ou apenas uma passagem iluminadora.